sábado, 31 de janeiro de 2009

QUANDO TE CONHECI

Quando te conheci
estalaram fogos de artifício no céu do meu espanto
e meu coração abriu-se em flor
papoila vermelha
desabrochando ao quente sol de agosto
desta paixão.

E houve coros de Anjos e responsos profanos
Hossanas e Aleluias e saudações à Natureza!

Quando te conheci
reescreveu-se a beleza das cores e os pontos cardeais
renasceram as procissões
os passeios a pé, aos domingos
e as bandas a tocarem nos coretos das praças!

Quando te conheci
rebentaram os diques da tristeza
a alegria jorrou nos coretos dos jardins
e foi a festa!

Quando te conheci
reinventou-se a Felicidade!...

" Lume"
Maria Mamede

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Solidão

Na minha terra há um rio
Que nunca vai ter ao mar
Trago-o dentro do meu peito
O meu corpo é o seu leito
Onde ele se pode espraiar.

Na minha terra há um pranto
Duma mãe que não secou
Escorre nas minhas veias
Como o mar por entre areias
Que o Oceano afundou.

Na minha terra há um porto
Com barcos por atracar
As amarras trago-as eu
No destino que me deu
Outro porto para embarcar.

Na minha terra há um mundo
Diferente deste onde estou.
Mas não o trago comigo
Ficou para meu castigo
No canto do ossobô*

*passaro que anuncia a chuva

Maria Olinda Beja (São Tomé)

Sarah

A mulher que esta na minha cama
Já não tem 20 anos, há muito tempo
Os olhos pisados
Pelos anos
Pelos amores
Dia após dia
A boca usada
Pelos beijos
Amiúde, mas
Muito mal dados
A cor do rosto, pálida
Não obstante a maquilhagem
Mais pálida que uma
Nódoa de lua

A mulher que esta na minha cama
Já não tem 20 anos, há muito tempo
Os seios pesados
De tanto amor
Já não merecem
Que lhes chamem isco
O corpo enfastiado
Demasiado acarinhado
Amiúde, mas
Demasiado mal-amado
O dorso corcunda
Parece suportar
Lembranças de quem
Teve que fugir

A mulher que esta na minha cama
Já não tem 20 anos, há muito tempo
Não riais
Não toqueis
Guardai as vossas lágrimas
Os vossos sarcasmos pois
Quando a noite
Nos reúne
O seu corpo, as suas mãos
Oferecem-se aos meus
E é o seu coração
Coberto de lágrimas
E de feridas
Que me serena

Georges Moustaki

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Mulher

A mulher não é só casa
mulher-loiça, mulher-cama
ela é também mulher-asa,
mulher-força, mulher-chama

E é preciso dizer
dessa antiga condição
a mulher soube trazer
a cabeça e o coração

Trouxe a fábrica ao seu lar
e ordenado à cozinha
e impôs a trabalhar
a razão que sempre tinha

Trabalho não só de parto
mas também de construção
para um filho crescer farto
para um filho crescer são

A posse vai-se acabar
no tempo da liberdade
o que importa é saber estar
juntos em pé de igualdade

Desde que as coisas se tornem
naquilo que a gente quer
é igual dizer meu homem
ou dizer minha mulher

José Carlos Ary dos Santos

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

A volta do Boémio

A volta do Boémio

Boémia
Aqui me tens de regresso
E suplicante te peço
A minha nova inscrição
Voltei
Para rever os amigos que um dia
Deixei a chorar de alegria
Me acompanha o meu violão

Boémia
Sabendo que andei distante
Sei que essa gente falante
Vai agora ironizar
Ele voltou
O boémio voltou novamente
Partiu daqui tão contente
Por que razão quer voltar ?

Acontece que a mulher que floriu o meu caminho
De ternura meiguice e carinho
Sendo a vida do meu coração
Compreendeu e abraçou-me a sorrir
Meu amor, você pode partir
Não esqueça o seu violão
Va rever os teus rios
Teus montes, cascatas
Va sonhar com nova serenata
E abraçar seus amigos leais
Va embora
Pois me resta o consolo e a alegria
De saber que depois da boémia
E de mim
Que você gosta mais…

Adelino Moreira

domingo, 25 de janeiro de 2009

AUTOPSICOGRAFIA



O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa

sábado, 24 de janeiro de 2009

Lily

Encontravam-na até bonita Lily
Vinha da Somália Lily
Num barco cheio de imigrantes
Que vinham de boa vontade
Esvaziar o lixo de Paris
Julgava que éramos todos iguais Lily
No país de Voltaire e Victor Hugo Lily
Mas por exemplo para Debussy
É preciso duas negras para uma branca
É isso a grande diferença
Adorava de tal maneira a liberdade Lily
Sonhava com fraternidade Lily
No hotel rua Secréton
Disseram-lhe logo ao chegar
Que ali só recebiam brancos.

Descarregou caixotes Lily
Executou os trabalhos mais sujos Lily
Gritou para vender couve-flor
Na rua, os seus irmãos de cor
Acompanhavam-na com o som dos martelos pneumáticos
E quando lhe chamavam Branca de neve
Não caia na armadilha Lily
Encontrava que era divertido Lily
Mesmo se era necessário apertar os dentes
Ficariam demasiado satisfeitos
Amou um loiro de caracóis Lily
Que desejava casar com ela Lily
Mas os sogros disseram-lhe
Não somos racistas nem por um vintém
Mas não queremos cá disso na família

Experimentou a América Lily
O grande país da democracia Lily
Senão tivesse visto, não teria acreditado
Que a cor do desespero
Ali também fosse o negro
Mas numa manifestação em Memphis Lily
Em que viu Angela Davis Lily
Que lhe disse, vem minha irmã
Juntos teremos menos medo
Dos lobos que esperam o caçador
Para enfrentar os seus medos Lily
Levantou o seu punho com raiva Lily
E a criança que nascera um dia
Terá a cor do amor
Contra a qual ninguém pode nada

Emcontravam-na até bonita lily
Vinha da Somália lily
Num barco cheio de imigrantes
Que vinham da sua própria vontade
Vazar o lixo de Paris

Pierre Perret
"du rire aux larmes"

Clandestino

Solo voy con mi pena
Sola va mi condena
Correr es mi destino
Para burlar la ley.
Perdido en el corazón
De la grande Babylon
Me dicen el clandestino
Por no llevar papel.
Pa' una ciudad del norte
Yo me fui a trabajar
Mi vida la dejé
Entre Ceuta y Gibraltar
Soy una raya en el mar
Fantasma en la ciudad.
Mi vida va prohibida
Dice la autoridad
Solo voy con mi pena
Sola va mi condena
Correr es mi destino
Por no llevar papel
Perdido en el corazón
De la grande Babylon
Me dicen el clandestino
Yo soy el quiebra ley
Mano Negra, clandestina
Peruano, clandestino
Africano, clandestino
Marijuana, ilegal.

Solo voy con mi pena
Sola va mi condena
Correr es mi destino
Para burlar la ley.
Perdido en el corazón
De la grande Babylon
Me dicen el clandestino
Por no llevar papel
ad
Solo voy con mi pena
Sola va mi condena
Correr es mi destino
Por no llevar papel

Manu Chao

Dedicado a todos los imigrantes

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O Gorila

Era através de fortes grades
Que as fêmeas do conselho
Contemplavam um potente gorila
Sem recear os dizeres das mas línguas
Sem pudor estas comadres
Espreitavam um ponto preciso
Que do modo mais severo a minha mãezinha
Me proibiu de nomear aqui

Atenção! Gorila

Subitamente a prisão tão segura
Onde vivia o belo animal
Abre-se sem saber porquê (suponho
Que a tinham fechado mal)
O símio saindo da jaula
Diz :” é hoje que a vou perder!”
Falava da sua virgindade
Devem ter adivinhado, espero!

Atenção! Gorila

O dono do jardim zoológico
Perdido, gritava: “Ai meu Deus!”
De medo, pois o gorila,
Jamais ainda vira uma macaca!
Logo que a gente feminina
Soube que o símio era virgem
Em vez de aproveitar a ocasião
Largou! Parando só dois fusos horários mais longe

Atenção! Gorila

Aquelas mesmas que outrora
O chocavam de um olho decidido
Fugiram, provando que não tinham
Nenhuma constância nas ideias
Vão era o seu temor!
O gorila é um brincalhão
Bem superior ao homem no amor
Não se contam as mulheres que o confirmarão

Atenção! Gorila

Todo este mundo se precipita
Fora de alcance deste símio em cio
Salvo uma velha desdentada
E um jovem juiz em madeira bruta
Vendo que todas se recusavam
O quadrúpede acelera coitado
O seu balancear na direcção dos vestidos
Da velha e do magistrado

Atenção! Gorila

“Ahhhh! Suspira a centenária...
que ainda me possam desejar
seria algo extraordinário
e a bem dizer inesperado”
o juiz, ele, pensava sereno
“Tomar-me por uma macaca
é completamente impossível...”
O que segue demonstra o contrário




Atenção! Gorila

Imaginai que um de vós possa ser
Como o símio obrigado a
Escolher entre um juiz e uma anciã
Qual preferíeis entre os dois?
Se uma alternativa dessas me calhasse
Um desses dias
Seria, tenho a certeza, a velha
De quem mais eu iria gostar

Atenção! Gorila

Mas, por desgraça, se o gorila
No campo do amor vale o seu preço
Sabe-se que ao contrário ele não brilha
Nem pelo seu gosto nem pelo seu espírito
Então, em vez de escolher a velha
Como teria feito não importa quem
Pegou no juiz pela orelha
E levou-o para o mato, oiçam bem...

Atenção! Gorila

O que segue seria delicado
É pena, mas não poderei
Dizer e lamento
Riríeis sem dúvida um pouco
Pois o juiz no momento supremo
Gritava “mamã” chorava sem parar
Como o infeliz a quem, nesse mesmo dia
Tinha mandado a cabeça cortar...

Atenção! Goriiiiiiiiiiilaaaaaaaaaaaaaaa!

George Brassens

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Não me deixes

Não me deixes

Não me deixes
É necessário esquecer
Tudo se pode esquecer
Já se esta a apagar…
Esquecer o tempo
O mal entendido
O tempo perdido
A procurar porquê
Esquecer as horas
Que matam por vezes
Com golpes de como
O coração, a felicidade
Não me deixes
Não me deixes
Não me deixes
Não me deixes

Não me deixes
Ofertar-te-ei
Pérolas de chuva
Vindas de países
Onde nem sequer chove
Lavarei a terra
Até que eu morra
Para cobrir o teu corpo
De ouro e de luz
Construirei um recanto
Onde o amor é rei
Onde o amor é lei
Onde serás a rainha
Não me deixes
Não me deixes
Não me deixes
Não me deixes

Não me deixes
Inventar-te-ei
Palavras insanas
Que compreenderas
Falar-te-ei
Daqueles amantes
Que por duas vezes
Viram os seus corações abraçarem-se
Contar-te-ei a história daquele rei
Que se deixou morrer
Por não ter podido encontrar-te
Não me deixes
Não me deixes Não me deixes
Não me deixes

Não me deixes
Já se viu tantas vezes
Reaparecerem as chamas
De um antigo vulcão
Que julgava-mos demasiado ancião
Parece que as terras queimadas
Dão mais trigo
Que o melhor mês de Abril
E quando chega a noite
Para que o céu possa flamejar,
O vermelho e o negro,
Não são obrigados a se acasalarem?
Não me deixes
Não me deixes
Não me deixes
Não me deixes

Não me deixes
Não chorarei mais
Não volto a falar
Esconder-me-ei
Para melhor te ver
Dançar e sorrir
Para te escutar
Cantando e rindo
Deixa que seja
A sombra da tua sombra
A sombra da tua mão
A sombra do teu cão
Não me deixes
Não me deixes
Não me deixes
Não me deixes



Jacques Brel
Ne me quitte pas

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Conxuro

Mouchos, coruxas, sapos e bruxas.
Desmos e diaños das nevoadas veigas.
Corvos pintigas e meigas, feitizos das maneiñeiras.
Pobres cañotas furadas, fogar dos vermes e alimañas.
Lume das Santas Campañas, mal de ollo, negros meigallos, cheiro dos mortos,
tronos e raios.
Oubeo do can, pregón da morte ; fociño do sátiro e pe de coello.
Pecadora lingua da mala muller casada cun home vello.
Auverno de Satán e Belcebú lume dos cadávres ardentes, corpos mutilados dos inocentes, peidos dos infernales cús, muxido da mar embravecida.
Barriga inútil da muller solteira, falar dos gatos que andan a xaneira, quedella porca da cabra mal parida.
Con este fol levantarei as chamas deste lume que asemella ao do inferno, e fixirán as bruxas acaballo das suas escobas, índose bañar na praia das areias gordas . ¡oide, vide ! os ruxidos que dan as que non poden deixar de queimarse no aguardente quedando así purificadas.
E cando este brebaxe baixe polas nosas gorxas, quedaremos libres dos males da nosa ialma e de todo embruxamento.
Forzas do ar, terra mar e lume, a vós fago esta chamada : si é verdade que tendes máis poder que a humana xente, eiquí e agora, facede cos espritos dos amigos que están fora, participen cos nós desta queimada.

Popular Galego

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Pequeno-almoço

Deitou o café
Na chávena
Deitou o leite
Na chávena de café
Pôs açúcar no café com leite
Com a pequena colher
Mexeu
Bebeu o café com leite
Pousou a chávena
Sem falar
Acendeu
Um cigarro
Fez círculos
Do fumo
Meteu as cinzas
No cinzeiro
Sem me falar
Sem olhar para mim
Levantou-se
Pôs o chapéu na cabeça
Colocou
O impermeável
Porque chovia
E foi-se
Sem uma palavra
Sem olhar para mim
E eu peguei
Na cabeça com a mão
E chorei

Jacques Prévert
Paroles

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Os meninos do Huambo

Com fios feitos de lágrimas passadas
Os meninos de Huambo fazem alegria
Constroem sonhos com os mais velhos de mãos dadas
E no céu descobrem estrelas de magia

Com os lábios de dizer nova poesia
Soletram as estrelas como letras
E vão juntando no céu como pedrinhas
Estrelas letras para fazer novas palavras

Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão aprender como se ganha uma bandeira
Vão saber o que custou a liberdade

Com os sorrisos mais lindos do planalto
Fazem continhas engraçadas de somar
Somam beijos com flores e com suor
E subtraem manhã cedo por luar

Dividem a chuva miudinha pelo milho
Multiplicam o vento pelo mar
Soltam ao céu as estrelas já escritas
Constelações que brilham sempre sem parar

Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão aprender como se ganha uma bandeira
Vão saber o que custou a liberdade

Palavras sempre novas, sempre novas
Palavras deste tempo sempre novo
Porque os meninos inventaram coisas novas
E até já dizem que as estrelas são do povo

Assim contentes à voltinha da fogueira
Juntam palavras deste tempo sempre novo
Porque os meninos inventaram coisas novas
E até já dizem que as estrelas são do povo

Rui Monteiro

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Parasitas

No meio de uma feira, uns poucos de palhaços
Andavam a mostrar em cima de um jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.

Os magros histriões, hipócritas, devassos,
Exploram assim a flor do sentimento,
E o monstro arregalava os grandes olhos bassos,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.

E toda a gente deu esmola aos tais ciganos :
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu ao ver aquel quadro, apóstolos romanos,

Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da Cruz,
Que andais pelos universo, há mil e tantos anos,
Exibindo e explorando, o corpo de Jesus.

A Velhice do Padre Eterno
Guerra Junqueiro

domingo, 11 de janeiro de 2009

A morte saiu à rua

A morte saiu à rua num dia assim,
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim,
Uma gota rubra sobre a calçada cai,
E um rio de sangue do peito aberto sai.

O vento que dá nas canas do canavial
E a foice de uma ceifeira de Portugal,
E o som da bigorna, como o clarim do céu,
Vão dizendo dizendo em toda à parte « o pintor morreu ».

Teu sangue, pintor, reclama outra morte igual,
Só olho por olho e dente por dente vale,
A lei assassina, a morte que te matou,
Teu corpo pertence à terra que te abraçou.

Aqui te afirmamos, dente por dente assim,
Que um dia rirá quem rirá por fim,
Da curva da estrada há feitas no chão,
E em todas florirão rosas por uma nação.

Zeca Afonso

sábado, 10 de janeiro de 2009

O Carvalho e o Junco

O Carvalho, um dia disse ao Junco :
«Você tem muitas razões par se dar com a natureza ;
Uma carriça para si, é um pesado fardo
O mínimo vento, que por ventura,
Faça enrugar, a superfície da água,
Obriga-vos a baixar a cabeça:
Entretanto a minha testa, igual a um Cáucaso
Não contente de parar os raios do sol,
Desafia o esforço da tempestade.
Tudo o que para si, é impetuoso vento do Norte
Me parece a mim, brisa ligeira e agradável.
Ainda se nascesse ao abrigo da folhagem
Com que cubro a vizinhança,
Não sofreria tanto :
Eu o defenderia da trovoada;
Mas como nasce a maior parte das vezes
Nas margens húmidas do reino do vento…
A natureza para consigo parece-me injusta.
- A sua compaixão, respondeu-lhe o arbusto,
Parte de um bom natural ; mas não se apoquente.
Os ventos são-me menos, que para si, medonhos
Eu vergo, mas não parto. Até agora,
Contra os seus temíveis golpes
Tem resistido sem dobrar as costas:
Mas esperemos o fim». Enquanto dizia estas palavras,
Do outro lado do horizonte chegava furioso
O mais terrível dos filhos
Que o norte tivesse levado no seu ventre.
A Arvore aguentou-se ; o Junco dobrou-se.
O vento redobra os seus esforços,
Tanto e tão bem que desenraíza
Aquele que tinha o céu por vizinho
E de quem os pés, tocavam o império dos mortos.

Jean de La Fontaine
Fables

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Vicente




Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.
Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.
Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre.
Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.

Bichos
Miguel Torga

Un saxo en la néboa




Un home necesitaba diñero con urxencia para pagar-se unha paxage a América. Este home era amigo do meu pai e tiña un saxofón. O meu pai era carpinteiro e facía carros do país con rodas de carballo e eixo de ameneiro.
Cando os facía, asobiaba. Inflaba as meixelas como peitos de paparroibo e soaba moi ben, a frauta e o violín, acompañado pola percusión nobre das ferramentas na madeira. O meu pai fixolle un carro a un labrador rico, sobriño de crego, e logo, prestoulle o diñero ao amigo que quería ir a America.
Este amigo tocara tempo atrás, cando había un sindicato obreiro e este sindicato tiña unha banda de música. E regaloullo ao meu pai o día en que se embarcou para américa. E o meu pai pousoumo nas mans con moito coidado, como se fora de cristal.
-A ver se algún día chegas a tocar o Francisco alegre, corazón mío.
Gustabálle moito aquel pasodobre.

Manuel Rivas
¿Que me queres amor ?

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

LA POESÍA ES UN ARMA CARGADA DE FUTURO

Cuando ya nada se espera personalmente exaltante,
mas se palpita y se sigue más acá de la conciencia,
fieramente existiendo, ciegamente afirmado,
como un pulso que golpea las tinieblas,
cuando se miran de frente
los vertiginosos ojos claros de la muerte,
se dicen las verdades:
las bárbaras, terribles, amorosas crueldades.
Se dicen los poemas
que ensanchan los pulmones de cuantos, asfixiados,
piden ser, piden ritmo,
piden ley para aquello que sienten excesivo.
Con la velocidad del instinto,
con el rayo del prodigio,
como mágica evidencia, lo real se nos convierte
en lo idéntico a sí mismo.
Poesía para el pobre, poesía necesaria
como el pan de cada día,
como el aire que exigimos trece veces por minuto,
para ser y en tanto somos dar un sí que glorifica.
Porque vivimos a golpes, porque apenas si nos dejan
decir que somos quien somos,
nuestros cantares no pueden ser sin pecado un adorno.
Estamos tocando el fondo.
Maldigo la poesía concebida como un lujo
cultural por los neutrales
que, lavándose las manos, se desentienden y evaden.
Maldigo la poesía de quien no toma partido hasta mancharse.
Hago mías las faltas. Siento en mí a cuantos sufren
y canto respirando.
Canto, y canto, y cantando más allá de mis penas
personales, me ensancho.
Quisiera daros vida, provocar nuevos actos,
y calculo por eso con técnica qué puedo.
Me siento un ingeniero del verso y un obrero
que trabaja con otros a España en sus aceros.
Tal es mi poesía: poesía-herramienta
a la vez que latido de lo unánime y ciego.
Tal es, arma cargada de futuro expansivo
con que te apunto al pecho.
No es una poesía gota a gota pensada.
No es un bello producto. No es un fruto perfecto.
Es algo como el aire que todos respiramos
y es el canto que espacia cuanto dentro llevamos.
Son palabras que todos repetimos sintiendo
como nuestras, y vuelan. Son más que lo mentado.
Son lo más necesario: lo que no tiene nombre.
Son gritos en el cielo, y en la tierra son actos.

Gabriel Celaya

domingo, 4 de janeiro de 2009

"Monangamba"

Naquela roça grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações;
Naquela roça grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.
O café vai ser torrado
pisado, torturado,
vai ficar negro,
negro da cor do contratado.
Negro da cor do contratado!
Perguntem as aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:
Quem se levanta cedo? quem vai a tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipoia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdem
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinquenta angolares
"porrada se refilares"?
Quem?
Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer
- Quem?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar
maquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?
Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande - ter dinheiro?
- Quem?
E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
- "Monangambééé..."
Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras
- "Monangambéé...'"
António Jacinto (Poeta angolano, 1924-1991) de Poemas, 1961 cantado por rui mingas

sábado, 3 de janeiro de 2009

Se necessitas

Nada compreendeste

Se necessitas comboios para alcançar a aventura
E brancos navios que te possam levar
Procurar um sol, a meter nos teus olhos
Procurar canções que possas cantar

Então…

Se necessitas a alvorada para acreditar no amanhã
E amanhãs para poder esperar
Reencontrar a esperança que te escorregou entre os dedos
Reencontrar a mão que a tua mão deixar

Então…

Se necessitares palavras ditas pelos anciãos
Para justificar todas as tuas renuncias
Se para ti a poesia já nada é mais que um jogo
Se toda a tua vida se resume a envelhecimento

Então…

Se necessitas o aborrecimento para pareceres profundo
E o barulho das cidades para embebedar os teus remorsos
A fraqueza para pareceres bom
E depois a ira para pareceres forte

Então nada compreendeste.

Jacques Brel
Paris, 1956

A palmada

Uma viúva ou um órfão ; haverá mais comovente?
Um velho amigo de escola, tendo morrido sem filhos,
Deixou neste mundo uma surpreendente esposa,
Indo eu fazer uma visita à desesperada
Não sabendo, depois, como terminar a noitada
Fiz-lhe companhia na câmara-ardente.

Para conter as suas lágrimas, para acalmar as suas dores,
Pus-me a contar balelas e ditos espirituosos,
Todos os meios são bons para sarar as almas…
Rapidamente, graças a estas pilhérias,
A viúva as mãos sobre os quadris, graças a Deus!
Riamos tal e qual dois perdidos.

O meu cachimbo saía um pouco do meu casaco,
De modo agradável, incentivou-me : enchei-o!
Que nenhum imperativo moral o pare!
Se o meu pobre marido detestava o tabaco
Agora já nem o fumo o incomoda.
-Mas, onde pus eu, a minha cigarrilha?

A meia-noite, com uma doce voz de serafim
Perguntou-me se não tinha fome.
-Fazia-o voltar, acrescentou,
Prolongar a piedade até a inanição?
Que diríeis vós de uma frugal consoada?
Tomamos uma pequena ceia à luz dos círios.

Olha como é belo! Parece apenas dormir.
Ele ao menos, não diria que não tenho razão
Em afogar a minha dor numa cascata de Champanhe.
Quando terminamos o segundo Magno,
A viúva comovida, em nome do pequeno Jesus
O seu espírito pronto a começar a batalha…

Meu Deus, o que apenas somos… !
Suspirava sentando-se no meu colo.
E após ter colado o beiço ao meu lábio
-Agora fico tranquila! Disse ; tinha medo
que, debaixo do teu bigode tipo sapador
não escondesses um lábio-rachado.

Bigode tipo sapador! O meu bigode? Imagina!
Essa comparação merecia uma palmada.
Levantei-lhe a saia, e sem dizer mais nada
Seguro de cumprir, com certeza, o meu dever
Mas fechando os olhos para demais não ver
Paf ! Sentiu a mão da vingança cair sobre a sua nádega.

Aí ! Partiu-me o rabo em dois!
Gemeu e eu, beijei-lhe a testa, envergonhado,
Temendo ter batido de modo exagerado, brutal
No entanto, mais tarde, vim a saber, o que me entusiasma
Que o dito, assim era já à bastante tempo
Mentirosa! A racha simplesmente congénita…

Quando levantei a mão, pela segunda vez
Já quase sem vontade, tinha perdido a fé
Sobretudo, ela era requintada a marota!
-O amigo reparou que eu tinha um magnífico cu?
A mão da vingança caindo, sem malícia…
O terceiro golpe, nada mais foi que carícia.

Traduction arrangée du texte original en français
"La fessée"
George Brassens

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

A INTERNACIONAL

De pé, ó vítimas da fome!
De pé, famélicos da terra!
Da ideia a chama já consome,
A crosta bruta que a soterra.
Cortai o mal bem pelo fundo!
De pé, de pé, não mais senhores!
Se nada somos neste mundo,
Sejamos tudo, ó produtores!

Bem unidos façamos,
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional!
Bem unidos façamos,
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional!

Messias, Deus, chefes supremos,
Nada esperemos de nenhum!
Sejamos nós quem conquistemos
A Terra-Mãe livre e comum!
Para não ter protestos vãos,
Para sair deste antro estreito,
Façamos nós por nossas mãos
Tudo o que a nós diz respeito!

Bem unidos façamos,
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional!
Bem unidos façamos,
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional!

Crime de rico a lei o cobre,
O Estado esmaga o oprimido.
Não há direitos para o pobre,
Ao rico tudo é permitido.
À opressão não mais sujeitos!
Somos iguais todos os seres.
Não mais deveres sem direitos,
Não mais direitos sem deveres!

Bem unidos façamos,
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional!
Bem unidos façamos,
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional!

Abomináveis na grandeza,
Os reis da mina e da fornalha
Edificaram a riqueza
Sobre o suor de quem trabalha!
Todo o produto de quem sua
A corja rica o recolheu.
Querendo que ela o restitua,
O povo só quer o que é seu!

Bem unidos façamos,
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional!
Bem unidos façamos,
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional!

Fomos de fumo embriagados,
Paz entre nós, guerra aos senhores!
Façamos greve de soldados!
Somos irmãos, trabalhadores!
Se a raça vil, cheia de galas,
Nos quer à força canibais,
Logo verá que as nossas balas
São para os nossos generais!

Bem unidos façamos,
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional!
Bem unidos façamos,
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional!

Somos o povo dos activos
Trabalhador forte e fecundo.
Pertence a Terra aos produtivos;
Ó parasitas, deixai o mundo!
Ó parasita que te nutres
Do nosso sangue a gotejar,
Se nos faltarem os abutres
Não deixa o sol de fulgurar!

Bem unidos façamos,
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional!
Bem unidos façamos,
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional!

Canção do carcereiro



Quand il est mort le poète

Onde vais belo carcereiro
Com essa chave manchada de sangue
Vou libertar aquela que amo
Se ainda é tempo
E que fechei
Com ternura, cruelmente
No mais secreto dos meus desejos
No mais profundo dos meus tormentos
Nas mentiras sobre o futuro
Na parvoíce dos juramentos
Quero liberta-la
Quero que seja livre
Até de me esquecer
Até de voltar
E voltar a amar-me
Ou de amar outrem
Se outrem lhe agradar
E se ficar sozinho
E ela se for
Guardarei somente
Guardarei para sempre
Nas minhas duas mãos em concha
Até ao fim dos meus dias
O doce dos seus seios
Modelados pelo amor

Jacques Prévert
Paroles