domingo, 13 de janeiro de 2013

Texto de Valter Hugo Mãe

Os professores

Achei por muito tempo que ia ser professor. Tinha pensado em livros a vida inteira, era-me imperiosa a dedicação a aprender e não guardava dúvidas acerca da importância de ensinar. Lembrava-me de alguns professores como se fossem família ou amores proibidos. Tivemuma professora tão bonita e simpática que me serviu de padrão de felicidade absoluta ao menos entre os meus treze e os quinze anos de idade. A escola, como mundo completo, podia ser esse lugar perfeito
... Ver mais de liberdade intelectual, de liberdade superior, onde cada indivíduo se vota a encontrar o seu mais genuíno, honesto, caminho. Os professores são quem ainda pode, por delicado e precioso ofício, tornar-se o caminho das pedras na porcaria de mundo em que o mundo se tem vindo a tornar. Nunca tive exatamente de ensinar ninguém. Orientei uns cursos breves, a muito custo, e tento explicar umas clarividências ao cão que tenho há umas semanas. Sinto-me sempre mais afetivo do que efetivo na passagem do testemunho. Quero muito que o Freud, o meu cão, entenda que estabeleço regras para que tenhamos uma vida melhor, mas não suporto a tristeza dele quando lhe ralho ou o fecho meia hora na marquise. Sei perfeitamente que não tenho pedagogia, não estudei didática, não sou senão um tipo intuitivo e atabalhoado. Mas sei, e disso não tenho dúvida, que há quem saiba transmitir conhecimentos e que transmitir conhecimentos é como criar de novo aquele que os recebe. Os alunos nascem diante dos professores, uma e outra vez. Surgem de dentro de si mesmos a partir do entusiasmo e das palavras dos professores que os transformam em melhores versões. Quantas vezes me senti outro depois de uma aula brilhante. Punha-me a caminho de casa como se tivesse crescido um palmo inteiro durante cinquenta minutos. Como se fosse muito mais gente. Cheio de um orgulho comovido por haver tantos assuntos incríveis para se discutir e por merecer que alguém os discutisse comigo. Houve um dia, numa aula de história do sétimo ano, em que falámos das estátuas da Roma antiga. Respondi à professora, uma gorduchinha toda contente e que me deixava contente também, que eram os olhos que induziam a sensação de vida às figuras de pedra. A senhora regozijou. Disse que eu estava muito certo. Iluminei-me todo, não por ter sido o mais rápido a descortinar aquela solução, mas porque tínhamos visto imagens das estátuas mais deslumbrantes do mundo e eu estava esmagado de beleza. Quando me elogiou a resposta, a minha professora contente apenas me premiou a maravilha que era, na verdade, a capacidade de induzir maravilha que ela própria tinha. Estávamos, naquela sala de aula, ao menos nós os dois, felizes. Profundamente felizes. Talvez estas coisas só tenham uma importância nostálgica do tempo da meninice, mas é verdade que quando estive em Florença me doíam os olhos diante das estátuas que vira em reproduções no sétimo ano da escola. E o meu coração galopava como se estivesse a cumprir uma sedução antiga, um amor que começara
muito antigamente, se não inteiramente criado por uma professora, sem dúvida que potenciado e acarinhado por uma professora. Todo o amor que nos oferecem ou potenciam é a mais preciosa dádiva possível. Dá -me isto agora porque me ando a convencer de que temos um governo que odeia o seu próprio povo. E porque me parece que perseguir e tomar os
professores como má gente é destruir a nossa própria casa. Os professores são extensões óbvias dos pais, dos encarregados pela educação de algum miúdo, e massacrá-los é como pedir que não sejam capazes de cuidar da maravilha que é a meninice dos nossos miúdos. É como pedir que abdiquem de melhorar os nossos miúdos, que é pior do
que nos arrancarem telhas da casa, é pior do que perder a casa, é pior do que comer apenas sopa todos os dias. Estragar os nossos miúdos é o fim do mundo. Estragar os professores, e as escolas, que são fundamentais para melhorarem os nossos miúdos, é o fim do mundo. Nas escolas reside a esperança toda de que, um dia, o mundo seja um
condomínio de gente bem formada, apaziguada com a sua condição mortal mas esforçada para se transcender no alcance da felicidade. E a felicidade, disso já sabemos todos, não é individual. É obrigatoriamente uma conquista para um coletivo. Porque sozinhos por natureza andam os destituídos de afeto. As escolas não podem ser transformadas em lugares de guerra. Os professores não podem ser reduzidos a burocratas e não são elásticos. Não é indiferente ensinar
vinte ou trinta pessoas ao mesmo tempo. Os alunos não podem abdicar da maravilha nem do entusiasmo do conhecimento. E um país que forma os seus cidadãos e depois os exporta sem piedade e por qualquer preço é
um país que enlouqueceu. Um país que não se ocupa com a delicada tarefa de educar, não serve para nada. Está a suicidar-se. Odeia e odeia-se.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

          O doutor Da Barca estaba a escribir unha carta de amor. Por iso tachaba moito. Pensou que para ese mester a linguaxe era dunha pobreza extrema e sentiu non ter a desvergoña dun poeta. El tiñaa cando se trataba dos outros presos. Parte de súa terapia consistía en animarlos a lembrar as querencias e a poñerem unhas letras no correo . E prestaba a súa man para escribir con bo humor algunhas daquelas 
cartas. Chámase Isolina , doutor, Isolina? Isolina...Olor verde limón y naranja mandarina. Que che parece?
         Vaille gustar doutor. Ela é moi natural.
         Pero cando se trataba del, sentía que, en efecto, todas as cartas de amor eram ridículas. Ás veces ficaba abraiado co que un enfermo podía dicir sin artificio. Doutor, póñalle que que non se preocupe por min . Que mentras ela viva, eu non morrerei nunca. Que cando me falta o aire, respiro pola súa boca.
        E aqueloutro: Poña aí que volverei. Que volverei para tapar todas as pingueiras do tellado.
        Tachou de novo o encabezamento. A de hoxe tña que ser unha carta especial. Escrebiu, por fin: Muller. Foi entón cando oíu petar na porta do cuarto. Era xa tarde para os costumes do sanatorio penal, pasadas as once da noite. Quizais se tratase dunha urxencia. Abrui, disposto a disimular a contrariedade. A madre Izarme. Noutras ocasíons bromearía por mor do seu hábito branco de mercedaria, ah, pensei que era usted unha frangulla ecloplasmada!, pero desta vez notou unha sensacíon de irrealidade que o perturbo pola parte do pudor. A monxa sorría cinha picardía de muller. De repente, sen outro saúdo, sacou debaixo da saia unha botella de coñac.
       Para vosted, doutor. Para a noite de vodas!
       E foise apurada polo corredor, coma quen foxe da alegre ousadía, deixando unha aura de ollos acesos.
       Azul gris verde. 


       Ollos algo esgazados, cun pregamento da pel en semilúa nas pálpebras.
       Como os de Mariza. 


       Deus no existía, pensou Da Barca, pero si a providencia.

Manuel Rivas
O lapis do carpinteiro
Edicións xerais de Galicia

quarta-feira, 14 de março de 2012

RETRATO DE CATARINA EUFÉMIA

Da medonha saudade da medusa
que medeia entre nós e o passado
dessa palavra polvo da recusa
de um povo desgraçado.

Da palavra saudade a mais bonita
a mais prenha de pranto a mais novelo
da língua portuguesa fiz a fita encarnada
que ponho no cabelo.

Trança de trigo roxo
Catarina morrendo alpendurada
do alto de uma foice.
Soror Saudade Viva assassinada
pelas balas do sol
na culatra da noite.

Meu amor. Minha espiga. Meu herói
Meu homem. Meu rapaz. Minha mulher
de corpo inteiro como ninguém foi
de pedra e alma como ninguém quer.

ARY DOS SANTOS

SONETO ESCRITO NA MORTE DE TODOS
OS ANTIFASCISTAS ASSASSINADOS PELA PIDE

Vararam-te no corpo e não na força
e não importa o nome de quem eras
naquela tarde foste apenas corça
indefesa morrendo às mãos das feras.

Mas feras é demais. Apenas hienas
tão pútridas tão fétidas tão cães
que na sombra farejam as algemas
do nome agora morto que tu tens.

Morreste às mãos da tarde mas foi cedo.
Morreste porque não às mãos do medo
que a todos pôs calados e cativos.

Por essa tarde havemos de vingar-te
por essa morte havemos de cantar-te:
Para nós não há mortos. Só há vivos.


José Carlos Ary dos Santos

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

NATAL EM 3 DIMENSÕES

meu Natal de doce infância
de muitos longes daqui
onde o palmar tem fragrância
de aromas de abacaxi

onde o sol rei e senhor
nos fustiga impunemente
e nos tinge de outra cor…
escárnio de muita gente

meu outro Natal de pinho
bem diferente do primeiro
onde quem vive sozinho
esquenta a alma num braseiro

casas de pedra e de fumo
lareiras de sonhos vãos
outros cheiros que presumo
serem cheiros de outros chãos

meu este Natal de neve
tão diferente dos demais
onde o sonho (mesmo breve)
ainda sonha outros Natais!



OLINDA BEJA


Lausanne, Dezembro de 2011

domingo, 21 de agosto de 2011

Cores de parto


O que eu vi,
À nascença, foi o céu.

No rasgão da retina,
A desatada luz: o meu segundo oceano.

Aprendi a ser cego
Antes de, em linha e em cor,
O mundo se revelar.

O que depois vi,
Ainda sem saber que via,
Foram as mãos.

Parteiros gestos
Me ensinaram quanto,
Das mãos,
A vida inteira vamos nascendo.

As mãos foram,
Assim, o meu segundo ventre.

Luz e mãos
Moldaram a impossível fronteira
Entre oceano e o ventre.

Luz e mãos
Me consolaram
Da incurável solidão de ter nascido.

Mia couto
In “Tradutor de chuvas”

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Aventuras




http://www.salondulivrealencon.fr/

sábado, 12 de março de 2011

PIED-DE-NEZ


PIED-DE-NEZ

Lá anda a minha Dor as cambalhotas
No salão de vermelho atapetado —
Meu cetim de ternura engordurado,
Rendas da minha ânsia todas rotas...

0 Erro sempre a rir-me em destrambelho —
Falso mistério, mas que não se abrange...
De antigo armário que agoirento range,
Minha alma actual o esverdinhado espelho...

Chora em mim um palhaço às piruetas;
0 meu castelo em Espanha, ei-lo vendido —
E, entretanto, foram de violetas,

Deram-me beijos sem os ter pedido...
Mas como sempre, ao fim — bandeiras pretas,
Tômbolas falsas, carrossel partido...

Mário de Sá-Carneiro
Paris, Novembro de 1915

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

AL Berto

"Vou guardar as tuas mãos na paixão que tenho por ti, mas não te posso revelar o meu nome, nem precisas de o saber. Chama-me o que quiseres, dá-me um nome para que possamos amarmo-nos. Aquele que tinha perdi-o no caminho até aqui. Pertencia a outra paixão, e já a esqueci. Dá-me tu um nome para eu poder ficar contigo,,,, ( AL Berto)"

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Poema de amor

Poema de amor

Enquanto os meus passos procuram
nos teus a ressonância da alegria
e ambos reconhecemos a luz fascinada
do olhar, dá-me a tua mão.
O nosso caminho não é a tristeza,
nem a raiva, nem o medo.
O rio conhece-nos a voz
porque transportamos no coração
pássaros em chamas e vagueamos lado
a lado, sem tempo, sem idade.
Um desvio de malícia denuncia
a suspeita cumplicidade da brisa
que nos brinca no rosto.
Uma densa névoa lambe,
tumultuada, a pele da noite,
Ao amanhecer, quase inesperadamente,
far-se-á verão em nossas bocas.
O teu nome e o meu nome serão frutos
de esperma e saliva presos à língua.
Os teus olhos : inquietos,
deslumbrados, transparentes.

Graça Pires

sábado, 25 de setembro de 2010

VIA-LÁCTEA

VIA-LÁCTEA

I

Talvez sonhasse, quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada,
Entre as estrelas trêmulas subia
Uma infinita e cintilante escada.

E eu olhava-a de baixo, olhava-a...Em cada
Degrau, que o ouro mais límpido vestia,
Mudo e sereno, um anjo a harpa dourada,
Ressoante de súplicas, feria...Tu, mãe sagrada!

Vós também, formosas
Ilusões! sonhos meus! íeis por ela
Como um bando de sombras vaporosas.

E, ó meu amor! eu te buscava, quando
Vi que no alto surgias, calma e bela,
O olhar celeste para o meu baixando...

Olavo Bilac

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O LAPIS DO CARPINTEIRO

...
Os máis deles eran anarquistas e gustaban dos boleros románticos, coa melancolía do lóstrego luminoso. Non había instrumentos pero tocaban co vento e coas mans. 0 trombón, o saxo, a trompeta. Cadaquén reconstruía no aire o seu instrumento. Percusión habíaa auténtica. Aquel a quen chamaban Barbarito era quen de facer jazz cun penico. Discutiran se chamarlle Orquestra Ritz ou Orquestra Palace, pero ao final impúxose o nome de Cinco Estrelas. Cantaba Pepe Sánchez. Detivérano, con outras ducias de fùxidos, nas adegas dun pesqueiro, a piques de sair rumbo a Francia. Sánchez tiña o don da voz e, cando cantaba no patio, os presos miraban cara á lina sobranceira da cidade, porque a cadea estaba nun devalo entre o faro e a urbe, como dicindo non sabedes o que perdedes. Nese momento, calquera deles pagaría por estar alí. Na garita, Herbal pousaba o fusil, debruzábase na almofada de pedra e pechaba os ollos como o bedel dun teatro da ópera.
Habia unha lenda en torno a Pepe Sánchez. Nas vésperas das eleccións de 1936, cando xa se albiscaba a victoria das esquerdas, prodigáronse en Galicia as chamadas Misións. Eran predicacións ao aire libre, dirixidas sobre todo ás mulleres campesiñas, onde os reaccinarios colleitaban máis votos. Os ser­móns eran apocalípticos. Agoirábanse terribles plagas. Homes e mulleres fornicarían coma bestas. Os revolucionarios separarían aos fillos das nais nada máis saíren do ventre para educalos no ateísmo. Levarían as vacas sen pagar un peso. E sacarian a Lenin ou a Bakunin de procesión na vez da Virxe Maria ou do Santo Cristo. No lugar de Celas convocouse unha destas misións e un grupo de anarquistas decidiu rebentala. Fíxose un sorteo e tocoulle a Pepe Sánchez. 0 plan era o seguinte: Debía ir en burro, co hábito de dominico, e irromper coma un posuído no medio da prédica. Ao Pepe unhas lle ían e outras lle viñan e o dia do suceso almorzou cun cuartillo de augardente. Cando se presentou na campa, montado no burro, e berrando «¡Viva Cristo Rey, abaixo Manuel Azana!» e cousas polo estilo, os frades predicadores aínda non apareceran, retrasados por non se sabe que. Así que a multitude tomouno por verdadeiro e foino conducindo, sen el querer, cara ao púlpito improvisado. E entón a Pepe Sànchez non lle quedou máis remedio que tomar a palabra. E dixo o que lle saíu de dentro. Que non había no mundo ninguén sufîcientemente bo como para mandar sobre outro sen o seu consentimento. Que a unión entre home e muller tiña que ser libre, sen máis anel nin argola que o amor e a responsabilidade. Que. Que. Que quen rouba a un ladrón ten cen anos de perdón e que parva é a ovella que se confesa co lobo. Era un tipo guapo. E o vendaval abaneándolle o habîto e as románticas guedellas dáballe un magnifîco aire de profeta. Despois duns primeiros murmurios, fixose o silencio e parte dos congregados, sobre todo as mozas, asentían e mirábano con devociôn. E daquela Pepe, xa desenfreado, coma se estivese no palco da festa, cantou aquel boléro que tanto lle gustaba.

En el tronco de un árbol una niña
grabó su nombre henchida de placer,
y el árbol conmovido allá en su seno
a la niña una flor dejó caer.

Foi un éxito aquela misión.
A Pepe Sánchez fusilárono un amencer chuvioso de outono do 38.

...

Manuel Rivas
Edicións Xerais de Galicia

terça-feira, 17 de agosto de 2010

“OS VELLOS NON DEBEN NAMORARSE”

Em tempos de “acordo ortográfico” que apenas deturpa a língua portuguesa, porque assim falavam os meus avós, e nunca devemos esquecer de onde viemos, aconselho a leitura desta farsa, escrita em galego, por Castelao de Rianxo:

“Miñas doñas e meus señores:
Axiña ides ver unha farsa en três lances, na que se demonstra que los vellos non deben de namorar-se; pero no pensedes que a miña obra é de tesis. Non é de tesis non. Trátase a penas dunha síntesis artística ou, mais ben, artimaña escenográfica onde xogan o amor e a morte de três vellos imprudentes: o boticário don Saturio, que non aturou a falcatruada de Lela e mátase con solimán da súa própria botica; o fidalgo don Ramón, que por un bico de Micaela morre deitado no esterco; o vinculeiro señor Fuco, que por casar con Pimpinela mórrese de felicidade. Son três faces diferentes dun mesmo drama, contado á maneira galega e para regalia dos que poidan comprender o noso linguaxe. Pero este coñecidícimo drama, que agora ides ver nunha farsa nova, é, así mesmo, un aviso de três estalos que lle damos aos vellos namoradeiros. Cómpre decir que as vellas non están no caso dos vellos, anque os amores serodios andan sempre emparellados coa morte, pois neste caso soio perden a vida os mozos que se dixan Chuchar por velas indecentes. Non, o drama é de homes que se namoran a destempo, porque non souperan aproveitarse do amor quando eran mozos ou porque pretenden burlarse da morte quando xa a levan ao lombo. Os homes deben buscar tesouros amorosos na mocedade, e gardalos ben gardadiños para quando chegue a Vellez, si é que arelan o respeto do mundo e non gostan de vérense retratados nesta casta de comédias. Ninguén se bulra dun vello e unha vella que siguen amándose tolamente. ¡ E que émoción dá ver a un vello vedreiro que chora por un amor que perdeu cando era mozo! Os vellos deben gardar amores antigos, porque axúdanlles a vivir; pero morren cos amores novos, e a sua morte fai rir ás xentes.”
Boas leituras!

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

CRONICA DE ANTIGOS REIS

CRONICA DE ANTIGOS REIS
...
Que rio te conmove, segrel, que chúvia antiga
Cae no teu corazón para cantares, que árvore florida?
Lenes viñan as ondas e tamén na ribeira
Cantaban os barqueiros, os cegos
Transcrevian o seu desígnio, e temperaban
Os capitáns o tempo
Dando-lle á moa de afiar espadas: Era
O fluir do cântico e as pedras relocian
Para ser catedrais pórtico aberto
-tímpano foi a rocha mais lañada-
E soergueu a voz de entre as maquias, nas vendimas
Andou, cantou no berce, sob os piñeiros en flor
Imos bailar belida e entón o rei dispuxo
A sua voz no âmbito e as harpas
Retumbaran como quando no corazón estoura
Un amor ou unha fonte abre o seu chafarís
E corre sangre a mares, ese viño docíssimo
Nos corpos que se aman. El rei manda lavrar
Sobre lo mar as barcas e entra primavera
Nos reinos de ocidente, como se manda á flor
Esparexer perfume. Veñen logo os laúdes,
A flor de avelaneira, ai amor como viñan
Os rios na crecida todos de rosas fulxir:
Trovador ou segrel, señor da poesia,
Que ouros fixo da língua por honrar Maria.
E o rei, a treboada da sua voz, andaba
Nas eiras, nos beizos o seu canto quando chegou Abril
E ve-se a sombra ainda no horizonte,
Ouvide os rios...

In “Última fuxida a harar”
Antón Avilés de Taramancos

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Graça Pires

Foi em Jullho, que bandos e bandos de gaivotas,
planaram sobre o olhar de tua mãe,
para que ao nascer, herdasses a secreta
violência das marés.
Agora, é sempre em Julho que, dos teus olhos,
se avista o oceano inteiro,
enquanto um navio te cresce, perfeito,
sobre os lábios, soletrando íntimas paragens.

in "Quando as estevas entraram no poema"

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Força camarada...

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago
In Os Poemas Possíveis

terça-feira, 22 de junho de 2010

Ouvir Estrelas

"Ora (direis) ouvir estrelas!
...Certo
Perdeste o senso!"
E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,

Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas?
Que sentido
Tem o que dizes, quando não estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".

Olavo Bilac

quinta-feira, 13 de maio de 2010

POEMA DE AMOR

Enquanto os meus passos procuram
nos teus a ressonância da alegria
e ambos reconhecemos a luz fascinada
do olhar, dá-me a tua mão.
O nosso caminho não é a tristeza,
nem a raiva, nem o medo.
O rio conhece-nos a voz
porque transportamos no coração
pássaros em chamas e vagueamos lado
a lado, sem tempo, sem idade.
Um desvio de malícia denuncia
a suspeita cumplicidade da brisa
que nos brinca no rosto.
Uma densa névoa lambe,
tumultuada, a pele da noite,
Ao amanhecer, quase inesperadamente,
far-se-à verão em nossas bocas.
O teu nome e o meu nome serão frutos
de esperma e saliva presos à língua.
Os teus olhos : inquietos,
deslumbrados, transparentes.

Graça Pires
In Conjugar afectos, 1997

domingo, 18 de abril de 2010

Mário Césariny

Entre nós e as palavras há metal fundente

entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos morte

violar-nos

tirar

do mais fundo de nós o mais útil segredo

entre nós e as palavras há perfis ardentes

espaços cheios de gente de costas

altas flores venenosas

portas por abrir

e escadas e ponteiros e crianças sentadas

à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos

há palavras de vida há palavras de morte

há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar

há palavras acesas como barcos

e há palavras homens, palavras que guardam

o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,

as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras nocturnas palavras gemidos

palavras que nos sobem ilegíveis à boca

palavras diamantes palavras nunca escritas

palavras impossíveis de escrever

por não termos connosco cordas de violinos

nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar

e os braços dos amantes escrevem muito alto

muito além do azul onde oxidados morrem

palavras maternais só sombra só soluço

só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados

e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

sábado, 10 de abril de 2010

Miguel Sousa Tavares

De novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.



Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre.

Miguel Torga

Recomeça....
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
"Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.."

segunda-feira, 8 de março de 2010

Professora Olinda Beja


Convite



ACOSP – Associação da Comunidade de S. Tomé e Príncipe em Portugal, em parceria com ICID – Instituto para Cooperação e Desenvolvimento Internacional tem o ensejo de convidar V. Excelência a participar no dia 28 de Março na apresentação do livro da escritora são-tomense Olinda Beja “Aromas de Cajamanga”, no auditório do Instituto da Juventude, sito no Parque as Nações.
A apresentação contará com um recital, com o acompanhamento musical de Filipe Santo.


Contamos desde já com a sua prestimosa presença.

PROGRAMA
17h00 – Abertura e apresentação do livro Aromas de Cajamanga, Prof. Carlos
Fontes.
17h30 – Declamação de poemas de Olinda Beja
• Liberato Moniz
• Natália Umbilina
• Carlos Menezes
• Ângelo Torres
18h30 – Recital de Olinda Beja, com acompanhamento musical de Filipe Santo.
19h00 – Fim do evento.
Com os melhores cumprimentos,
António Cádio Paraíso

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Maya Angelou

AINDA ASSIM, EU ME LEVANTO

Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.

Minha presença o incomoda?
Por que meu brilho o intimida?
Porque eu caminho como quem possui
Riquezas dignas do grego Midas.

Como a lua e como o sol no céu,
Com a certeza da onda no mar,
Como a esperança emergindo na desgraça,
Assim eu vou me levantar.

Você não queria me ver quebrada?
Cabeça curvada e olhos para o chão?
Ombros caídos como as lágrimas,
Minha alma enfraquecida pela solidão?

Meu orgulho o ofende?
Tenho certeza que sim
Porque eu rio como quem possui
Ouros escondidos em mim.

Pode me atirar palavras afiadas,
Dilacerar-me com seu olhar,
Você pode me matar em nome do ódio,
Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.

Minha sensualidade incomoda?
Será que você se pergunta
Porquê eu danço como se tivesse
Um diamante onde as coxas se juntam?

Da favela, da humilhação imposta pela cor
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, profundo na fé,
Crescendo e expandindo-se como a maré.

Deixando para trás noites de terror e atrocidade
Eu me levanto
Em direção a um novo dia de intensa claridade
Eu me levanto
Trazendo comigo o dom de meus antepassados,
Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.
E assim, eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Jorge de Sena

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?
Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos se voltassem.

Carpe Diem

Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? "Não", dizes, "nada me obrigará
à renúncia de mim próprio --- nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!"
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.

Nuno Judice

sábado, 20 de fevereiro de 2010

ramos rosa

Se as minhas lágrimas e os meus dentes calam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Luiza Neto Jorge

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

VEM SENTAR-TE COMIGO, LÍDIA

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço


Ricardo Reis

domingo, 7 de fevereiro de 2010

"Jose Dantas" imortalizada pelo Ivon Cury e Elba Ramalho

FARINHADA
Tava na peneira, eu tava peneirando
Eu tava num namoro, eu tava namorando
(Bis)

Na farinhada, lá da Serra do Teixeira
Namorei uma cabôca, nunca vi tão feiticeira
A mininada descascava macaxeira
Zé Migué no caititú e eu e ela na peneira

Tava na peneira, eu tava peneirando
Eu tava num namoro, eu tava namorando
(Bis)

O vento dava, sacudia a cabilêra
Levantava a saia dela no balanço da peneira
Fechei os óio e o vento foi soprando
Quando deu um ridimuinho sem querer tava espiando

Tava na peneira, eu tava peneirando
Eu tava num namoro, eu tava namorando
(Bis)

De madrugada nós fiquemos ali sozinho
O pai dela soube disso deu de perna no caminho
Chegando lá até riu da brincadeira
Nós estava namorando, eu e ela na peneira

Tava na peneira, eu tava peneirando
Eu tava num namoro, eu tava namorando
(Bis)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Angelo Paraíso Martins

Se o dia é de sol,

Se o vento é de leste,

Que aurora, que festa,

Que bom viajar!

Mas chega o inverno

Gemidos e queixas

Sofridas canções

Se ouvem no mar!



Por isso é preciso

Saber viajar

Formando comboios

De velas unidas

Que enfrentem a tormenta

A guerra do mar,

E a um porto seguro

Garantam chegar!

Um porto de paz

De luz e de amor

Que cheguem pra todos,

Sem preço, sem dores,

Assim como chegam

Os beijos do sol

E o perfume das flores!...

Pra isto, é preciso,

Com velas unidas,

Saber velejar!...

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Maria

Maria

Nascida no monte
À beira da estrada
Maria
Bebida na fonte
Nas ervas criada

Talvez
Que Maria se espante
De ser tão louvada
Mas não
Quem por ela se prende
De a ver tão prendada

Maria
Nascida do trevo
Criada na trigo
Quem dera
Maria que o trevo
Casara comigo

Prouvera
A Maria sem medo
Crer no que lhe digo
Maria
Nascida no trevo
Beiral do mendigo
Maria
Nascida no trevo
Beiral do mendigo

Maria
De todas primeira
De todas menina
Maria
Soubera a cigana
Ler a tua sina

Não sei
Se deveras se engana
Quem demais se afina
Maria
Sol da madrugada
Flor de tangerina
Maria
Sol de madrugada
Flor de tangerina
_____________________________

Letra e música de Zeca Afonso
Tema de 1964,
dedicado a Zélia, sua segunda mulher.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Vidro côncavo

Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Sabor a sal.
Maresia,
Vidro côncavo a boiar.
Dói esta corda vibrante.
A corda que o barco prende
à fria argola do cais.
Se vem onda que a levante
Vem logo outra que a distende.
Não tem descanso jamais.

António Gedeão

sábado, 28 de novembro de 2009

Baixinho

Eu gosto de te ouvir, oh vento!
mas não andes agora a ramalhar
ao pé de mim.

Um só momento, vento, sossegado!
Deixa-me aqui afogado
no silêncio da mata...

Porque eu sinto a minh'alma a querer falar;
porém tão em segredo fala ela
que se continuas, vento, a ramalhar,
Não consigo entendê-la...

Sebastião da Gama

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Multidão

Esta gente que vai e vem
de cá para lá,
e de lá para cá
que se cruza comigo,
que esbarra comigo,
que tem com certeza
os seus dramas iguais aos meus
as suas esperanças iguais as minhas,
não sabe nada da minha vida,
nem eu sei nada dos seus segredos.
cada um segue absorto em si
como se fosse de olhos fechados
e não tivesse as mãos para dar
e outras mãos desamparadas

Armindo Rodrigues

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

De pedra e cal

De pedra e cal é a cidade
Com campanários brancos
De pedra e cal é a cidade
Com algumas figueiras.

De pedra e cal são
Os labirintos brancos
E a brancura do sal
Sobe pelas escadas.

De pedra e cal a cidade
Toda quadriculada
Como um xadrez jogado
Só com pedras brancas.

Um xadrez só de torres
E cavalos-marinhos
Que sacodem as crinas
Sob os olhos das moiras.

Caminha devagar
Porque o chão é caiado.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 1 de novembro de 2009

Certeza

Sereno o parque espera
Mostra os braços cortados
e sonha com primavera
Com os seus olhos gelados

É um mundo que há-de vir
Naquela fé dormente
Um sonho que há-de abrir
Em ninhos e semente

Basta que um novo sol
Desça de um velho céu
E diga ao rouxinol
Que a vida não morreu.

Miguel Torga

sábado, 31 de outubro de 2009

As pedras falam?

As pedras falam? Pois falam
mas não à nossa maneira,
que todas as coisas sabem
uma historia que não calam.

Debaixo dos nossos pés
ou dentro da nossa mão
o que pensarão de nos?
o que de nos pensarão?

As pedras cantam nos lagos
choram no meio da rua
tremem de frio e de medo
quando a noite é fria e escura.

Riem nos muros ao sol
no fundo do mar se esquecem.
Umas partem como as aves
e nem mais tarde regressam.

Brilham quando a chuva cai.
vestem-se de musgo verde
em casa velha ou em ponte
que saiba matar a sede

Foi de duas pedras duras
que a faísca rebentou
uma germinou em flor
e a outra nos céus voou.

As pedras falam? Pois falam.
Só as entende quem quer,
que todas as coisas têm
uma coisa para dizer.

Maria Alberta Menéres

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Painel

Terra lavrada e pintada
Com a ponta da charrua.
Tela nua
Colorida.
Onde um gesto compassado,
Sagrado,
Semeia a vida.

Miguel Torga

sábado, 24 de outubro de 2009

COMEÇO A CONHECER-ME. NÃO EXISTO

Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram, ou a metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de chinelos no corredor...
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo... é um universo barato.

Álvaro de Campos

INSTANTE

A cena é muda e breve:
Num lameiro
Um cordeiro
A pastar ao de leve;

Embevecida
A mãe ovelha deixa de remoer;
E a vida
Pára também, a ver.

Miguel Torga

sábado, 17 de outubro de 2009

NIHIL ET CONSOLAMENTUM

A esponja

O peso de uma esponja aumenta
Proporcionalmente ao número
De gotas de agua que ela
Absorve

Mas nenhuma esponja pode
Absorver
Toda a água deste mundo

Quando uma esponja esta
Saturada
Ninguém pode prever
O comportamento da água
Que ela já não absorve
Nem o comportamento
Do mundo

É preciso imaginar no entanto
Uma esponja que absorveria
Toda a água do mundo

Metê-la-íamos
No lugar do nosso lenço
No bolso do coração
Seria-mos o barco
Seria-mos o sal
Seria-mos
Todos os rios
Do mundo que desaguam
no céu
Uma esponja é
Como uma mala pura
Que conteria todos
Os nossos caminhos
Cada vez que nós
Compramos uma mala
Julgamos que ela
Vai diminuir o peso
Do necessário que
Arrumamos dentro

A mala ideal consiste em
Diminuir
O peso do que nós em ela
Transportamos
Até só pesar o seu
Peso de mala
Ou a vir a ser mais ligeira
Do que era
A partida
A ponto de nem mais existir

Numa esponja ideal
Pode-se
Arrumar inteiro o mar
Se a pomos no
No bolso do coração
Numa mala ideal
Pode-se arrumar todo
O universo
A tropa engolida das
Estrelas
Uma só formiga
Um só amor

Num poema
Pode-se arrumar
Todo futuro
Que desejaríamos
Fazer existir




L’esponga

Lo pés d’una esponga creis
Rapòrt amb la nombre
De gotas d’aiga
Que bèu

Mas cap d’esponga non pòt
Beure
Tota l’aiga del mond

Quand una esponga es
Confla
Degun pòt pás prevéser
L’anar de l’aiga
Que pòt pás mai beure
Ni mai l’anança
Del mond

Pr’aquò cal imaginar
L’esponga que beuriá
Tota l’aiga del mond


La botariam
En la placa del nòstre mocador
Al recanton del còr
Seriam batèl
Seriam sal
Seriam
Totes los flumis
Del mond que dins lo cèl
S’alargan
Una esponga es
Coma una maleta blosa
Que cabriá totes
Los nòstres camins
Cada còp que
Crompam una maleta
Cressem
Que dels afars
Qu’i estremam
Ne dermesirà lo pes

La maleta ideala permet
D’abaissar
Lo pés de çò
Qu’i carrejan
Fins a pesar sonque
Lo pés de la maleta
O de venir mai leugièra de çà
Qu’éra aperabans
Fins
A non pas existir mai

Dins una esponga ideala
Podem estremar
La mar tota
Se la placam dins lo sacon
Del cor
Una maleta ideala
Pòt caber tot
L’univèrs
La sòla aprefondida
De las estrelas
Una formiga soleta
Un sol amor

Dins un poema podem
Estremar
Tot l’avenidor
Que voldriam far
èsser


bâtons et poemes cathares
SERGE PEY
Délit Editions

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A pulga

Um ponto somente
É este animal
Que pouco se vê
E muito se sente

E a gente não gosta
Da pulga
Porquê?
A pulga,
Afinal
Só de animais gosta
E gosta da gente.

A gente que o diga...
Gosta, morde e pica.
Mas que rica amiga!

Pica
Por ser má?
Pica por prazer?
Lá prazer terá.
Sabe-se isso bem...
Mas se a pulga pica,
É para comer,
Não mata ninguém
O pobre animal
Precisa de sangue...
Mas é natural
Que a gente zangue
Quem dera apanha-la
Mordê-la, pisa-la!

Vai a gente ver
E ela
Já se foi...
E sempre a morder.

Será que ela
Julga
Que aquilo não dói?

E assim a pulga
Maluca, malvada,
Mas tão pequenina,
Ladina, rabina,
Que acho engraçada

LEONEL NEVES

domingo, 27 de setembro de 2009

Na minha bicicleta

Na minha bicicleta de recados
eu vou pelos caminhos,
pedalo nas palavras, atravesso as cidades
bato às portas das casas e vêm homens espantados
ouvir o meu canto, ouvir a minha canção.

Na minha bicicleta de recados
eu vou pelos caminhos.
vem gente para a rua a ver a novidade
como se fosse a chegada
do João que foi a Índia
e era o moço mais galante
que havia nas redondezas
Eu não sou o João que foi à Índia
mas trago todos os soldados que partiram
e as cartas que não escreveram
e as saudades que tiveram
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.

Manuel Alegre

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

de Fernando Pessoa

Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é vivida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

sábado, 29 de agosto de 2009

No comboio descendente

No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada
Uns por ver rir os outros
E os outros por tudo e por nada
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada

No comboio descendente
Vinham todos à janela
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela

No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono
E outros nem sim nem não
No comboio descendente
De Palmela a Portimão.

Fernando Pessoa

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Dia feriado

certo dia
ao meio-dia
à hora de ponta
um carro eléctrico
resolveu
fazer feriado
por sua conta...

Estou farto
farto de trabalhar
hoje quero ir passear

Dizem que se esta bem
no jardim de Belém
pois vou até lá
e vou já a correr
sem querer saber
do que possam dizer

nas paragens,
reinava a maior confusão.
seria alguma aflição?
Onde iria um eléctrico vazio
a correr naquele corrupio?

Quando chegou a Belém
o eléctrico
para não dar nas vistas
misturou-se com os turistas.

Visitou os monumentos
e ouviu uma guia
muito apressada
fazer da historia
grande baralhada.

deixou os turistas
e ainda bem
pois foi comer
pastéis de Belém

Comeu meia centena
com açúcar e canela
e depois voltou a passear
e foi ver o mar...
Ao cair a noite
regressou a Lisboa
pela beira-rio
sem um lugar vazio
e muito contente
como toda a gente
que de vez em quando
em vez de trabalhar
vai ler o mar...

Maria Cândida Mendonça

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Destino

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

Mia Couto

domingo, 23 de agosto de 2009

Caracol

Bato à porta. Ninguém diz:
"Pode entrar", faça favor!"
Não há degrau, não há voz
Nem há fumo nem calor.

É a casa do caracol,
Não esta pintada a cal
E no entanto brilha ao sol
Na sua forma espiral.

Bato à porta, não há porta
Só um buraco profundo
Um túnel que há-de acabar
No centro daquele mundo.

O caracol foi-se embora
Porque mudou de espiral?
Porque foi mudar de casa
Sem recado nem sinal?

Maria Alberta Menéres

sábado, 22 de agosto de 2009

Caminhada

Nessa mata ninguém mata
a pata que vive ali
com duas patas de pata
pata acolá, pata aqui.

Pa ta que gosta de matas
visita as matas vizinhas
com as suas duas patas
seguidas de dez patinhas.

E cada patinha tem,
como a pata lá da mata,
duas patinhas também
que são patinhas de pata.

Sidónio Muralha

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Pois eu gosto de crianças

Pois eu gosto de crianças!
Já fui criança também...
Não me lembro de o ter sido;
O que fui sabe-me bem.

É como se de repente
A minha imagem mudasse
No cristal de uma nascente
E tudo o que sou voltasse
À pureza da semente

Miguel Torga