terça-feira, 19 de maio de 2009

Casa Velha

Rasgões em ameaça à coesão da cal, as plantas invasoras, vingativas, rejeitadas pela placidez dos bosques, as cores decadentes, tumulares, o sossobrar do prumo nas empenas, a desistência da onda nos beirais.

Há quem diga assim a casa velha.

A porta só no trinco, em alarde vermelho, as trepadeiras vivas abraçando a cal, em cada telha um ninho ou uma espera, um sossego, um tempo livre de traições ou abandonos. A respiração dos passos na soleira, o calor no inverno, o amor de quem partiu e a paz que se aprendeu.

Há quem diga assim a casa velha.

Licinia Quitério

Adriana Calcanhoto

Eu perco o chão
Eu não acho as palavras
Eu ando tão triste
Eu ando pela sala
Eu perco a hora
Eu chego no fim
Eu deixo a porta aberta
Eu não moro mais em mim
Eu perco as chaves de casa
Eu perco o freio
Estou em milhares de cacos
Eu estou ao meio
Onde será que você está agora

sábado, 16 de maio de 2009

Elis Regina

Tem dias em que já se acorda cansado...

Do trânsito que não dá trégua.
Do trabalho repetitivo.
De ver na estante os mesmos livros.
De ter mais dívidas do que crédito.
De percorrer o mesmo caminho.
De aceitar as mesmas desculpas.
De acreditar nas mesmas mentiras.
De esperar por algo que não vem.
De ser sutil quando se deveria chutar o balde.
De ver repetidos os mesmos atos.
De seguir a mesma rotina.
De bater na mesma tecla.
De brigar pelos mesmos motivos.
De não jogar e, mesmo assim, perder.
De ser assombrado por fantasmas conhecidos.
De falar e não ser entendido.
De ouvir e entender errado.
De calar e mesmo assim querer ser compreendido.
De correr e continuar a ser perseguido.
De amar e ser gostado.
De achar que detém e ser detido.
De se esconder e nunca ser encontrado.
De escrever e não ser lido.
De ter um nó na garganta tão bem atado.
De conjugar o verbo na pessoa errada.
De se iludir.
De fingir que não entende meias palavras.
De calar a palavra que ofende e se sentir engasgado.
De respeitar todas as leis.
De ver o mesmo velho filme na TV.
De tentar e dar errado.

Tem dias em que se acorda cansado. Mas amanhã isso passa. Sempre passa

Nuno Judice

Quero escrever-te um poema que

tenha um sentido claro como o

que os teus olhos me disseram.

Poderia ser um poema de amor,

tão breve como o instante em

que me deixaste ver os teus olhos.

Mas o que os olhos dizem não cabe

num poema, nem eu sei como se diz

o amor que só os olhos conhecem.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Parabens

BALADA DA SOCIEDADE DE CONSUMO



Eles cantavam nas margens dos grandes rios.



Havia a sociedade de consumo.

Mas eles perguntavam e o homem? É só o que consomem

é só o homem e o seu sumo?

Onde está o homem? O homem? O homem?



E cantavam nas margens dos grandes rios.



Havia automóveis, frigoríficos, televisão

havia sociedades por acções.

Mas eles perguntavam: e o amor? É só solidão?

É só esta mobília a prestações?



E cantavam nas margens dos grandes rios.



Havia o verbo ser e o verbo ter

havia o não haver e o haver demais.

Mas eles perguntavam: e viver?

É só este não ser para ter mais?



E cantavam nas margens dos grandes rios.



Manuel Alegre

desde o 12 de Maio de 1936

segunda-feira, 11 de maio de 2009

ANTONIO GEDEAO

Sós,

irremediavelmente sós,

como um astro perdido que arrefece.

Todos passam por nós

e ninguém nos conhece.



Os que passam e os que ficam.

Todos se desconhecem.

Os astros nada explicam:

Arrefecem



Nesta envolvente solidão compacta,

quer se grite ou não se grite,

nenhum dar-se de outro se refracta,

nehum ser nós se transmite.



Quem sente o meu sentimento

sou eu só, e mais ninguém.

Quem sofre o meu sofrimento

sou eu só, e mais ninguém.

Quem estremece este meu estremecimento

sou eu só, e mais ninguém.



Dão-se os lábios, dão-se os braços

dão-se os olhos, dão-se os dedos,

bocetas de mil segredos

dão-se em pasmados compassos;

dão-se as noites, e dão-se os dias,

dão-se aflitivas esmolas,

abrem-se e dão-se as corolas

breves das carnes macias;

dão-se os nervos, dá-se a vida,

dá-se o sangue gota a gota,

como uma braçada rota

dá-se tudo e nada fica.



Mas este íntimo secreto

que no silêncio concreto,

este oferecer-se de dentro

num esgotamento completo,

este ser-se sem disfarçe,

virgem de mal e de bem,

este dar-se, este entregar-se,

descobrir-se, e desflorar-se,

é nosso de mais ninguem

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Saudade

Saudade - O que será... não sei... procurei sabê-lo
em dicionários antigos e poeirentos
e noutros livros onde não achei o sentido
desta doce palavra de perfis ambíguos.

Dizem que azuis são as montanhas como ela,
que nela se obscurecem os amores longínquos,
e um bom e nobre amigo meu (e das estrelas)
a nomeia num tremor de cabelos e mãos.

Hoje em Eça de Queiroz sem cuidar a descubro,
seu segredo se evade, sua doçura me obceca
como uma mariposa de estranho e fino corpo
sempre longe - tão longe! - de minhas redes tranquilas.

Saudade... Oiça, vizinho, sabe o significado
desta palavra branca que se evade como um peixe?
Não... e me treme na boca seu tremor delicado...
Saudade...

Pablo Neruda

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O adiar

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Álvaro de Campos

A Minha Saudade tem o Mar Aprisionado

A minha saudade tem o mar aprisionado
na sua teia de datas e lugares.
É uma matéria vibrátil e nostálgica
que não consigo tocar sem receio,
porque queima os dedos,
porque fere os lábios,
porque dilacera os olhos.
E não me venham dizer que é inocente,
passiva e benigna porque não posso acreditar.
A minha saudade tem mulheres
agarradas ao pescoço dos que partem,
crianças a brincarem nos passeios,
amantes ocultando-se nas sebes,
soldados execrando guerras.
Pode ser uma casa ou uma rede
das que não prendem pássaros nem peixes,
das que têm malhas largas
para deixar passar o vento e a pressa
das ondas no corpo da areia.
Seria hipócrita se dissesse
que esta saudade não me vem à boca
com o sabor a fogo das coisas incumpridas.
Imagino-a distante e extinta, e contudo
cresce em mim como um distúrbio da paixão.

José Jorge Letria