sábado, 21 de março de 2009

DISSE-TE ADEUS, E MORRI (fado)

Disse-te adeus e morri

E o cais, vazio de ti,

Aceitou novas marés.

Gritos de búzios perdidos

Roubaram dos meus sentidos

A gaivota que tu és.



Gaivota de asas paradas

Que não sente as madrugadas

E acorda à noite a chorar,

Gaivota que faz o ninho

Porque perdeu o caminho

Onde aprendeu a sonhar.



Presa no ventre do mar

O meu triste respirar

Sofre a invenção das horas,

Pois na ausencia que deixaste,

Meu amor, como ficaste,

Meu amor, como demoras!






Autores: Vasco de Lima Couto/ José António Sabrosa

sexta-feira, 20 de março de 2009

Rumo

Rumo


É tempo, companheiro!
Caminhemos ...
Longe, a Terra chama por nós,
e ninguém resiste à voz
Da Terra ...


Nela,
O mesmo sol ardente nos queimou
a mesma lua triste nos acariciou,
e se tu és negro e eu sou branco,
a mesma Terra nos gerou!


Vamos, companheiro ...
É tempo!


Que o meu coração
se abra à mágoa das tuas mágoas
e ao prazer dos teus prazeres
Irmão
Que as minhas mãos brancas se estendam
para estreitar com amor
as tuas longas mãos negras ...
E o meu suor
se junte ao teu suor,
quando rasgarmos os trilhos
de um mundo melhor!


Vamos!
que outro oceano nos inflama.. .
Ouves?
É a Terra que nos chama ...
É tempo, companheiro!
Caminhemos ...


ALDA LARA

quinta-feira, 19 de março de 2009

Eu E Ela

Coberto de folhagem, na verdura,

O teu braço ao redor do meu pescoço,

O teu fato sem ter um só destroço,

O meu braço apertando-te a cintura:



Num mimoso jardim, ó pomba mansa

Sobre um banco de mármore assentados.

Na sombra dos arbustos, que abraçados

Beijarão meigamente a tua trança.



Nós havemos de estar ambos unidos,

Sem gozos sensuais, sem más ideias,

Esquecendo para sempre as nossas ceias

E a loucura dos vinhos atrevidos.



Não teremos então sobre os joelhos

Um livro que nos diga muitas cousas

Dos mistérios que estão para além das lousas

Onde havemos de entrar antes de velhos.



Outras vezes buscando distracção

Leremos bons romances galhofeiros.

Gozaremos assim dias inteiros

Formando unicamente um coração.



Beatos ou pagãos, vida à paxá,

Nós leremos, aceita este meu voto,

O Flos-Sanctorum místico e devoto

E o laxo Cavalheiro de Faublas.

CESARIO VERDE

quarta-feira, 18 de março de 2009

Eugénio de Andrade

As Amoras

O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

Eugénio de Andrade ("O Outro Nome da Terra")

terça-feira, 17 de março de 2009

Poesia

Se todo o ser ao vento abandonamos

E sem medo nem dó nos destruímos,

Se morremos em tudo o que sentimos

E podemos cantar, é porque estamos

Nus em sangue, embalando a própria dor

Em frente às madrugadas do amor.

Quando a manhã brilhar refloriremos

E a alma possuirá esse esplendor

Prometido nas formas que perdemos.



Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 15 de março de 2009

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tude se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá Carneiro

sábado, 14 de março de 2009

DISCURSO DE SALAMANCA

Miguel de UNAMUNO
(12 de octubre del 1936)

Reconstitucion del discurso :

«Voy a ser breve. La verdad es más verdad cuando se manifiesta desnuda, libre de adornos y palabrería. Quisiera comentar el discurso, por llamarlo de algún modo, del general Millán Astray, quien se encuentra entre nosotros. Dejemos aparte el insulto personal que supone la repentina explosión de ofensas contra vascos y catalanes. Yo nací en Bilbao, en medio de los bombardeos de la segunda guerra carlista. Más adelante me case con esta ciudad de Salamanca, tan querida, pero sin olvidar jamás mi ciudad natal... »

(Primera interrupción, « Viva la muerte ! » )
Acabo de oír el grito necrófilo e insensato de “Viva la muerte”! Esto me suena lo mismo que “Muera la vida!” Y yo, que me he pasado toda la vida creando paradojas que provocaron el enojo de quienes no las comprendieron, he de deciros, con autoridad en la materia, que esta ridícula paradoja me parece repelente. Puesto que fue proclamada en homenaje al último orador, entiendo que fue dirigida a él, si bien de una forma excesiva y tortuosa, como testimonio de que él mismo es un símbolo de la muerte. Y otra cosa! [Unamuno comienza a exaltarse con sus propias palabras] El general Millán Astray es un inválido. No es preciso decirlo en un tono más bajo. Es un inválido de guerra.

También lo fue Cervantes. Pero los extremos no sirven como norma. Desgraciadamente hay hoy en día demasiados inválidos. Y pronto habrá más si Dios no nos ayuda.


Me duele pensar que el general Millán Astray pueda dictar las normas de sicología de las masas. Un inválido que carezca de la grandeza espiritual de Cervantes, que era un hombre, no un superhombre, viril y completo a pesar de sus mutilaciones, un inválido como dije, que carezca de esa superioridad del espíritu, suele sentirse aliviado viendo como aumenta el número de mutilados alrededor de él [...]”

(En este momento Millán Astray comienza a gritar “Abajo la inteligencia !”)


“Este es el templo de la inteligencia! Y yo soy su supremo sacerdote! Vosotros estáis profanando su sagrado recinto. Yo siempre he sido, diga lo que diga el proverbio, un profeta en mi propio país. Venceréis, pero no convenceréis. Venceréis porque tenéis sobrada fuerza bruta; pero no convenceréis, porque convencer significa persuadir. Y para persuadir necesitáis algo que os falta: razón y derecho en la lucha. Me parece inútil pediros que penséis en España. He dicho.”

quinta-feira, 12 de março de 2009

António Ramos Rosa





Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

terça-feira, 10 de março de 2009



Auto Retrato
Cecília Meireles por Apard Szènes


Reparei que a poeira se misturava às nuvens
Reparei que a poeira se misturava às nuvens,
e, sem pôr o ouvido na terra,
senti a pressa dos que chegavam.
Disse-me de repente: "Eis que o tropel avança".
Mas todos me olhavam como surdos,
e deixavam-me sem responder nada.
Vi as nuvens tornarem-se vermelhas
e reperti: "Eis que os incêndios se aproximam".
(Mas não havia mais interlocutores.)
"Eles vêm, eles não podem deixar de vir",
balbuciei para a solidão, para o ermo.
E já por detrás dos montes subiam chamas altas;
ou eram estandartes ou eram labaredas.
Perguntei: "Que me avle ter casa, parentes, vida?
Sou a terra que estremece? Ou a multidão que avança?
Ó solidão minha, ó limites da criatura!
Meu nome está em mim? No passado ou no futuro?
Ninguém responde. E o fogo avança para meu pequeno enigma".
Apenas um anjo negro entreabriu seus lábios,
verdadeiramente, como um botão de rosa.
"Death".
DEATH?
Por que me falas nesse idioma?, perguntei-lhe, sonhando.
Em qualquer língua se entende essa palavra.
Sem qualquer língua.
O sangue sabe-o.
Uma inteligência esparsa aprende
esse convite inadiável.
Búzios somos, moendo a vida
inteira essa música incessante.
Morte, morte.
Levamos toda a vida morrendo em surdina.
No trabalho, no amor, acordados, em sonho.
A vida é a vigilância da morte,
até que seu fogo veemente nos consuma
sem a consumir.

Cecília Meireles

segunda-feira, 9 de março de 2009

Arcebispada

Composição: José Afonso

Pregais o Cristo de Braga
Fazeis a guerra na rua
Sempre virados prò céu
Sempre virados prà Virgem
A Santa Cruzada manda
Matar o chivo vermelho
Contra a foice e o martelo
Contra a alfabetização
Curai de ganhar agora
Os vossos novos clientes
Além do pide e do bufo
Amigos do usurário
Além do latifundiário
Amigo do Capelão
"Abre Nuncio Vade Retro
Querem vender a nação"
"A medicina é ateia
Não cuida da salvação"
Que o diga o facultativo
Que o diga o cirurgião
Que o digam as criancinhas
"Rezas sim, parteiras não"
Se o Pinochet concordasse

Já em Fátima haveria
Mais de trinta mil vermelhos
A arder de noite e de dia
Caridade, a quanto obrigas
Só trinta mil voluntários
"Cristo reina Cristo vinga"
Nos vossos santos ovários
E também nos lampadários
E também nos trintanários
Abre Nuncio Vade Retro
Querem vender a nação

Ó Carnaval da capela
Ó liturgia do altar
Já lá vem Camilo Torres
Com o seu fusil a sangrar

Igreja dos privilégios
Mataste o Cristo a galope
Também Franco, o assassino
Mandou benzer o garrote

domingo, 8 de março de 2009

(Amor em Dias de Cólera )

... "Melhor seria começar pelo fim. Melhor seria nem começar.
Navegar é preciso, viver não é preciso. Seguindo a barca de Fermina Daza e Florentino Ariza, navegando rio acima e cabeceira abaixo, os atributos da navegação são recuperados (ou seriam do amor?). Um ato em si mesmo, amore fati. Atos irracionais, sentido em si mesmo?
Como um eterno retorno, como se houvesse um ciclo, um tempo próprio, inalterado, único, sempre o mesmo. Vai e vem. São 51 anos, 9 meses e 4 dias. Vai e vem.
Como se fosse um único dia, um único instante... como se nada houvesse passado entre o hoje e o ontem. Como se o tempo tivesse parado. Mas ele sabia que não havia parado porque lembrava cada instante em que viveu sem ela. Cada minuto do que experimentou e que ela não.
Como expressar 51 anos, 9 meses e 4 dias? Como fazê-la entender que viveu e não-viveu por ela? Como fazê-la sentir cada busca de olhar que o alimentava por mais 10 anos? Como compartilhar a experiência de ouvi-la rir, falar, caminhar sem ele durante 51 anos, 9 meses e 4 dias?
Rio abaixo, rio acima.
Gosto de tempo; tempo de velhos, pele seca, enrugada, mal-cheirosa, cheiro de tempo.
Como encantar quem não sabe que foi esperada e que durante todo esse pequeno longo tempo encantou?
Como dizer-lhe que a espera é parte do amor? Que não lhe importa ou incomoda ter esperado 51 anos, 9 meses e 4 dias. Faz parte. Ele esperava por isso.
Como dizer-lhe que não importa a pele, o cheiro... ou melhor, importa sim! Porque afinal esperou e acompanhou cada ruga que teve, cada cheiro que ganhou, cada passo que deu.
Como dizer que esperou por essas rugas? Que amou cada marca e que viveu por acompanhar cada momento? Viveu intensamente esses 51 anos, 9 meses e 4 dias. Junto a ela estava.
A preocupação dele, agora, é como ela vai suportar as marcas dele.
Fermina Daza não tem 51 anos, 9 meses e 4 dias.
Fermina Daza não esperou.
Rio acima, rio abaixo."

quarta-feira, 4 de março de 2009

Antonio Aleixo

São parvos, não rias deles,
deixa-os ser, que não são sós:
Às vezes rimos daqueles,
que valem mais do que nós.

terça-feira, 3 de março de 2009

VI

Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putissimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado;

Dido foi puta, e puta de um soldado;
Cleópatra por puta alcança a c’roa;
Tu, Lucécia com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado;

Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que inda há pouco morreu (diz a gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:

Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, oh, Nise, duvidosa
Que isso de virgo e honra é tudo peta.

Publicado em várias edições em nome de bocage
Este soneto é da autoria de João Vicente Pimentel Maldonado.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Cão como nós

Como nós eras altivo
Fiel mas como nós
Desobediente.
Gostavas de estar connosco a sós
Mas não cativo
E sempre presente-ausente
Como nós
Cão que não querias
Ser cão
E não lembias
A mão
E não respondias
A voz.
Cão
Como nós.

Lisboa, 22-02-2002
Manuel Alegre

domingo, 1 de março de 2009

Mamã negra

(À memória do poeta haitiano Jacques Roumain)

Tua presença, minha Mãe - drama vivo duma Raça,
Drama de carne e sangue
Que a Vida escreveu com a pena dos séculos!

Pela tua voz
Vozes vindas dos canaviais dos arrozais dos cafezais
[dos seringais dos algodoais!...
Vozes das plantações de Virgínia
dos campos das Carolinas
Alabama
Cuba
Brasil...
Vozes dos engenhos dos bangüês das tongas dos eitos
[das pampas das minas!
Vozes de Harlem Hill District South
vozes das sanzalas!
Vozes gemendo blues, subindo do Mississipi, ecoando
[dos vagões!
Vozes chorando na voz de Corrothers:
Lord God, what will have we done
- Vozes de toda América! Vozes de toda África!
Voz de todas as vozes, na voz altiva de Langston
Na bela voz de Guillén...

Pelo teu dorso
Rebrilhantes dorsos aso sóis mais fortes do mundo!
Rebrilhantes dorsos, fecundando com sangue, com suor
[amaciando as mais ricas terras do mundo!
Rebrilhantes dorsos (ai, a cor desses dorsos...)
Rebrilhantes dorsos torcidos no "tronco", pendentes da
[forca, caídos por Lynch!
Rebrilhantes dorsos (Ah, como brilham esses dorsos!)
ressuscitados em Zumbi, em Toussaint alevantados!
Rebrilhantes dorsos...
brilhem, brilhem, batedores de jazz
rebentem, rebentem, grilhetas da Alma
evade-te, ó Alma, nas asas da Música!
...do brilho do Sol, do Sol fecundo
imortal
e belo...

Pelo teu regaço, minha Mãe,
Outras gentes embaladas
à voz da ternura ninadas
do teu leite alimentadas
de bondade e poesia
de música ritmo e graça...
santos poetas e sábios...

Outras gentes... não teus filhos,
que estes nascendo alimárias
semoventes, coisas várias,
mais são filhos da desgraça:
a enxada é o seu brinquedo
trabalho escravo - folguedo...

Pelos teus olhos, minha Mãe
Vejo oceanos de dor
Claridades de sol-posto, paisagens
Roxas paisagens
Dramas de Cam e Jafé...
Mas vejo (Oh! se vejo!...)
mas vejo também que a luz roubada aos teus
[olhos, ora esplende
demoniacamente tentadora - como a Certeza...
cintilantemente firme - como a Esperança...
em nós outros, teus filhos,
gerando, formando, anunciando -

o dia da humanidade

O DIA DA HUMANIDADE!...

Viriato da Cruz